Antecipando o inevitavel 

J.Há

 

"É mais fácil suportar a morte sem pensar nela do que suportar o pensamento da morte sem morrer."  Blaise Pascal

 

Sei que estranharás esta minha carta assim tão fora de hora, não sei se cedo ou tarde, mas sem nexo, sem um propósito definido. Contudo, tinha que despedir-me de ti. É como um testamento, nunca se sabe a hora certa de fazê-lo. E... nessa incerteza, não poderia partir sem dizer-te algumas palavras apenas.

Não haverá lágrimas em nossa despedida, mas tem que ser assim, pois sinto-me alegre. É a alegria dos tristes, mas é alegria.

Desculpa-me, se não fiz o que esperavas de mim. Deste-me tão pouco tempo! Mas não faz mal.

Não pude fazer de ti uma prece constante de amor, como fazem os santos, porém nunca abandonei o que me oferecias de mais belo. Amei o céu azul, as tardes coloridas, as estrelas, as noites silenciosas, enfim, toda a natureza. Amei meus amigos, os velhos, os jovens e as crianças. Mas como sabes, não podia amar mais, pois meu ser ainda não estava bastante perfeito. Sei que os rastros que deixarei, da minha existência, serão apagados, mas partirei contente, convicto de que fiz o melhor que podia.

Engraçado, nunca senti curiosidade, mas agora estou louco por saber e ver se realmente existe o outro lado de ti, mesmo na cruel dúvida já estou com saudades do desconhecido...

Não é preciso pedir que não chores. Sei que não chorarás, pois estás acostumada a perder teus amigos. Eu mesmo sei que colaborei para algumas de suas perdas...

Partirei num dia lindo, verás. O céu estará azul, a natureza — que a tudo é indiferente — estará em festa. Abrirei as portas e janelas, e então, trazidas pelo vento, as folhas e as pétalas voarão para o meu rosto; verei pela janela, minha velha e amiga a árvore, o azul do céu, os pássaros cantando, o sol, enfim, a abundância de ti, ó Vida!

A natureza, eu sei... continuará insensível aos meus ais. A música dos imortais estará no ar. E então, quando os últimos raios do sol se puserem, a Ave Maria do amado Schubert encherá o ar com suas vibrações, e eu, muito feliz, te direi adeus.

Serei simples. Direi pouco, como fazem os tristes.

Direi em teus ouvidos: Vida, aqui vai o homem merencório, quase bom, amante da natureza, da arte, da ciência, da filosofia e sedento de confirmar, ou não, o eterno e o infinito.

Não tenho escolha, bem sei, devo partir, mas... mesmo não sabendo a qual teoria abraçar, supondo que me transforme em um pé de alface, mesmo assim, estarei sempre pronto a bem servir.

Não farei falta a ti. Outros melhores virão e realizarão talvez, o que não pude realizar.

 

Os sons da música imortal irão sumindo, a natureza irá se calando aos meus ouvidos, e se apagando para os meus olhos. E então, quase não te vendo mais, num último olhar, a ti que muito amei e com o sorriso dos tristes te direi, "Adeus"...

Não te preocupes mais, direi mais uma vez. Já não estou ouvindo o som de nenhuma música imortal e já sinto invadir-me a paz, e a harmonia do nada absoluto.

O vento cessará de balançar as árvores. Os pássaros adormecerão.

As notas melancólicas da Ave Maria não vibrarão mais, e na noite profunda, só se ouvirá, se possível, a voz misteriosa, apavorante, triste e filosófica do silêncio.

Vida, esta minha despedida antecipada é o esclarecimento de como penso que ela será, quando chegar o momento e para que tu não faltes.

Jota Há

 

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