E assim se passaram os tempos…
– não é letra de samba canção não, muito menos
de algum bolero que já rolaram por aí –,
é o espelho de uma realidade, daquela
realidade dura nua e crua, como costumam dizer os entendidos.
Trata-se de alguém que depois de alguns tempos
está retornando ao ambiente de onde nunca deveria ter saído, ou
melhor, vai ficar bem claro que, o ambiente é aquele que ele
nunca deveria ter-se ingressado.
Poderíamos tratar aqui: da volta dos que não
foram.
Quase um ano se passou, portando muitas noites
depois, reaparece aquele personagem é, o alcoólatra, aquela
pessoa viciada em bebidas alcoólicas que agora já se transformou
em alcoólico, seu corpo já contém álcool.
Como afirmam os especialistas: o criminoso
sempre retorna ao local do crime.
Sim, ele retornou ao bar aonde teve origem o
seu vício – agora já visivelmente acentuado.
Bastante embriagado paletó mal abotoado,
camisa saindo das calças, despenteado, barba por fazer e o nó da
gravata sem estar apertado.
Trazia nas mãos, um violão.
Nesse ambiente, quase um ano é muito tempo,
muito tempo mesmo.
Os membros dessa confraria têm memória curta,
apesar de fraternos enquanto você está em evidência.
Entra esbarrando em todas às mesas e nos seus
ocupantes também, até encontrar uma que estivesse desocupada.
Arrasta a cadeira, chamando a atenção de
todos, senta-se, coloca o violão sobre a mesa e grita:
— Seu Antônio! – esse o nome do dono do bar
como já sabemos –, que saudades! Traga-me uma dupla com duas
pedras!
Todos os fregueses ficaram observando àquele
estranho esquisito – nem tão estranho assim, mas a conveniência
os aconselhava a assim proceder – e, também eles estavam
curiosos para saber qual a atitude que o dono do bar iria tomar.
É sempre assim.
Wilson, esse o nome do personagem, já
conhecido sobejamente naquele ambiente, apenas preterido por
ter-se ausentado, atitude que os noctívagos não perdoam.
Tudo o que registrarmos sobre o Wilson, daqui
para frente, será sobre a sombra de um passado, passado tão
recente e cruel.
Porque do Wilson que nós conhecemos, só alguns
resquícios sobraram.
Tudo contribuiu para a degeneração:
falta de família, falta de laços afectivos,
afastamento dos amigos, mudança de ambiente e evidentemente o
álcool.
Seu António, apesar de no momento não estar
servindo ninguém, demorou tempo bastante considerável para
responder ao seu chamado.
Achamos que foi propositado, talvez
estivéssemos enganados, pode ter sido o impacto causado, e o Seu
António tenha ficado estarrecido com aquela presença que nada
tinha a ver com aquele Wilson que todos nós conhecemos e que ele
o conheceu muito bem.
Finalmente respondeu:
— Eu gostaria de não servir nada para o senhor
hoje, não sei onde, mas já bebeu demais, está embriagado Sr.
Wilson, aconselho-o a ir para casa.
— O que isso, Seu António, e a nossa amizade?
Vai deixar de servir-me, meu dinheiro ainda é
tão bom tanto quanto era antes.
— Está bem! Está bem!
Seu Antônio serve-lhe uma dose dupla com duas
pedras de gelo, conforme o pedido.
Ao ser servido, Wilson levanta-se, abraça o
Seu António e beija-o no rosto.
Aquela cena ridícula que só bêbado
proporciona, tornando-se o objecto de escárnio generalizado.
Foi difícil ao Seu António, desvencilhar-se
daquele abraço.
Os fregueses, o novo (velho) grupo, de onde
provavelmente, muito em breve sairá um outro alcoólatra, riram
daquele ato patético.
Talvez desconhecendo o velho aforismo: quem ri
de quem chora, para chorar não demora.
Wilson voltou a sentar-se, ou melhor, a arriar
o corpo na cadeira sem nenhuma compostura.
Sorveu àquela dose como se fosse água,
demonstrando ímpeto, necessidade de consumação alcoólica.
Imediatamente pediu outra.
Seu Antônio, talvez pensando em evitar
transtornos, serve-lhe uma nova dose dupla com duas pedras de
gelo.
A dose permanece sobre a mesa.
Wilson, com a cabeça baixa, rosto contrito,
como se estivesse remoendo um passado tão recente.
Talvez não, pode ter sido nossa impressão por
estarmos interessados no caso.
Permaneceu assim por alguns minutos.
De repente, lembra-se do violão, pega-o e
começa a tocar, dedilhar, de maneira destoada, apenas perturbou
ainda mais o ambiente com aquele som inesperado.
Pára, olha para todos os lados, quem sabe,
para observar a reacção dos presentes.
Deposita novamente o violão à mesa, ao fazê-lo
esbarra no copo que, derrama quase toda a dose servida – menos
mal, irá consumir menos.
Levanta-se, e sai cambaleando, dirige-se ao
banheiro.
Voltando, esbarra em tudo o que encontra pela
frente, o paletó agora já não está mal abotoado, está
desabotoado, o zíper das calças, puxado apenas até o meio da
braguilha, com parte da fralda da camisa saindo por ela.
Aparência ridícula, espectáculo para
estarrecer, a que ponto chega o ser humano.
Interessante, são, ou eram pessoas
conscientes.
Entre eles, é comum durante as noitadas,
recomendações de colega para colega: cuidado, muito cuidado para
não descer aquele degrau.
A vida é uma escadaria, se você descer o
último, ninguém mais vai dar uma mãozinha.
Chegando com dificuldades, à sua mesa, não se
senta, bebe o restante da dose que ali permanecia, vira-se para
todos e grita:
— Pessoal! Pessoal! Em homenagem ao meu amigo,
o Seu António.
Vocês todos conhecem o Seu António? É gente
boa! Eu vou tocar e cantar para todos um trabalho da minha
lavra, letra e música, que se intitula: Acervo.
Todos vão gostar, é muito bonito e comovente,
sem nenhuma pretensão, mas pode coincidir com a trajectória da
vida de alguns de vocês.
Continua em pé, segura o violão, com o corpo
encostado à mesa, começa, faz uma introdução que, ninguém
entende o que vai sair: bolero, tango ou samba canção e, canta
também desafinado: