Maria Petronilho






 


 

Maria

Mulher. Nasci mulher,
e meu pai não me pôde afogar.
Berrei - e foi só a primeira pedra
na calçada da desobediência.
Criei-me à deriva, sem freio no sonho.
Prendiam-me, e era solta
Soltavam-me, e era mansa pomba.
Por caridade
passei fome, ao desleixo,
de casa em casa,
- e tanta fartura esbanjada!,
Mas não há quem me queira , criança
a pedir tendo tanto, a penar tendo nada....
Criei-me, criada da criada
que "trouxeram para mim"....

Não importa!
"sou uma princesa encantada,
vou p'ra longe..."
dia após dia aguardava
mas  ninguém me resgatava, mas
nem pai, nem príncipe, nem fada!

Fiz-me mulher, sempre odiada.
Fui tambor da festa.
Arraial de pancada numa casa
que parecia tudo, menos o que era:
Uns a discutir com os outros.
Eu a servir todos
aliviando-lhes os braças do trabalho
e a raiva, de pancada.

Pior, eu ousava pensar
E era revolucionária.
Olhava o horror e o negava.
Dentro de mim o nojo enjoava.

A besta de carga arrepiou caminho:
Estudar... ai, não posso!
Preciso um emprego, se quero sair viva daqui!

Abri a porta da coragem e falei!

Abri a porta da gaiola de doidos
e abalei sem nada.

- Nada! - Má memória!

"Uma mulher que pensa não presta!
"Um homem sem riqueza não vale nada"
- Pois foi com o mais odiado por meu pai
que eu casei!

Ele fez de mim besta, com cornos e de carga.
Sofri e calei até dizer - BASTA!

Com uma filha pela mão ia caminhando
e todas as maleitas me iam seguindo
até cair, de exausta.

Com todas as forças me reergui.

A filha criada na sua vida instalei.

É pecado uma mulher amar, bem sei,
mas eu quis e foi, sim!
E amei, e amei
Até se descobrir que vivia uma farsa!

Meu pai morreu e fui eu que o enterrei
Meu pai deserdou-me e eu fiz as honras da des-herança.

Pena
que não me tenha
deserdado
das sovas e maus tratos que passei!

Às escuras me alumiei.
No Inverno vou na sombra.
No Verão suporto o sol.
Curtem-me a vida todas dores
de sal, de solidão,
de silêncio, da insolência dos outros,
das forças que me faltam
do tostão amargo
do sacrifício vão.

Mas tenho uma estrela cá dentro
que ninguém  há-de apagar!
Mas tenho uns nervos de aço
que ninguém há-de torcer!
Mas tenho uma coragem de ouro
que me vem a acompanhar
- e é esse o meu tesouro,
que ninguém pode roubar,
que as intempéries não mudam,
que está infiltrado em meu sangue
ninguém mo pode  tirar
mesmo morta, quando o sangue coalhar!
E tenho uma estrela por vela!
E tenho um alto sonhar,
de que mais vale pobre e honrada
que ter tanto e nada dar!

Fiz rimas com a minha vida:
que as venham buscar as ondas,
que eu já não posso ir ao mar.
Que as façam arder na pira
onde me hão-de queimar.
Que as cerrem no meu caixão
Para ter enfim companhia
que tanto lutei sozinha
e ninguém me dá valor!

 

Maria Petronilho _ 1999

Portugal

O poeta Palhaço _ Presságio _ Minha Rua

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